Conheça a história do investigador que perscruta a multidão por detrás do ecrã para compreender o mundo. Do crítico português que esteve seis semanas na selva, em reportagem, e à chegada viu o seu trabalho ser boicotado pelo órgão de comunicação social para o qual trabalhava. Do colunista que viveu um dos mais mediáticos casos de interferência do poder político no exercício da liberdade de expressão. Eis Eduardo Cintra Torres, o senhor multidão.

25 de abril de 1974. Quando Eduardo, então com 16 anos, abre os olhos percebe que à janela do seu quarto está a sua mãe. Não vê passar a revolução – confessa-nos, aliás que, “naquele dia, não se tinha a completa noção do que estava a acontecer” – porém, pela janela aberta, entraria um mundo de democracia desconhecido até então.

Eduardo Cintra Torres, que se dizia um miúdo ‘do contra’, como todos os outros, lembra-se perfeitamente das marcas das lagartas dos carros de combate e das chaimites no chão do Terreiro do Paço. Marcas que ficaram na memória, tais como aquelas que a democracia lhe traria, anos depois, já a trabalhar como jornalista, quando se vê envolvido num dos mais mediáticos casos de ataque à liberdade de expressão e de imprensa em Portugal.

Sexto filho de um total de sete irmãos, Eduardo Cintra Torres ainda esteve com um pé em Direito, para estudar advocacia, mas a paixão pela escrita acabou por falar mais alto. Aos catorze anos já escrevia micro-histórias que distribuía pelos colegas e depressa se tornavam ‘virais’ sendo copiadas à mão por toda a turma. Lembro-me que ofereci aquilo a um amigo ou amiga e a história começou a ser copiada e chegou a ter imensos exemplares manuscritos. Fiquei muito espantado com isso”. A ligação à escrita foi quase umbilical:

Escrevo desde miúdo, aliás, o meu primeiro texto publicado foi uma carta enviada à revista Tintim, precisamente com 14 anos, e recordo-me de ter ficado muito contente”.

Numa época em que, como nos conta, “a televisão era um canal e ao cinema ia duas ou três vezes por mês, no máximo”, o crítico recorda que “a maior parte do tempo era passado na rua, com os amigos, a andar de carrinhos de esferas e a fazer asneiras”. De uma infância que descreve como “muito bonita e sem incidentes”, Eduardo Cintra Torres guarda o cheiro do papel onde ensaiou as suas primeiras críticas. Recorda com nostalgia esse primeiro jornal de parede feito no Liceu. Lembro-me que foi preciso pedir autorização ao Reitor porque o jornal tinha de ir à comissão de censura. Eles viam os textos e só depois podíamos colocá-los na parede”.

Acredita que foi ali que começou a desenhar o seu futuro como jornalista. O que estaria longe de imaginar é que viria a tornar-se, em Portugal, num dos mais importantes críticos televisivos do século XXI.

Com uma tremenda paixão pela História, área na qual se licenciou, Eduardo Cintra Torres ainda fez uma tentativa para ingressar no mundo da investigação, mas, como nos conta, “o mundo académico era bem diferente do que é hoje e as oportunidades praticamente não existiam. Sempre procurei, sempre me empenhei muito mesmo, mas não foi possível”.

A impossibilidade de seguir ligado à academia levou-o inicialmente ao mundo do ensino, tendo lecionado no Liceu Gil Vicente e na Escola Secundária de Cascais, e mais tarde, ao universo da estatística, onde trabalhou numa empresa de sondagens. O destino final seria, porém, o jornalismo, área onde ganhou asas e estabeleceu uma sólida carreira. Começou a trabalhar na Agência Notícias de Portugal, em 1983, e passou, como colaborador, em jornais como o Público, o Diário de Notícias, o Jornal de Negócios, o Açoriano Oriental, o Primeiro de Janeiro e o Independente.

Embora reconheça “que não há democracia sem jornalismo”, Eduardo Cintra Torres não esquece alguns dos dissabores vividos ao serviço da profissão. Na memória, passados mais de trinta anos, permanece uma reportagem de guerra feita no interior de Angola. Depois de passar mais de seis semanas, sem qualquer contacto, no meio da selva, no território então controlado pela UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), o jornalista viu o seu trabalho ser boicotado dentro do próprio órgão de comunicação social onde trabalhava. “Foi um episódio longo e que me marcou muito de duas maneiras: a primeira foi compreender a dificuldade de estar num sítio daqueles, num cenário de guerra; a segunda foi verificar que tinha havido um boicote.

Era a suprema injustiça para quem tinha ido para uma situação de guerra e para um local onde nenhum jornalista português tinha estado antes”.

Recorda que “andava a pé, na selvam entre 30 a 40 km’s por dia, a comer comida horrosa” mas nem isso o demoveu de dar o melhor de si, como, confessa, aliás, continuar a fazer todos os dias: “Em geral trabalho de seis a sete dias por semana e, até hoje, todas as coisas que fiz foram coisas que quis fazer e que quis fazer bem. Nunca quis fazer só para ganhar uns cobres”.

Hoje, longe das redações, mas ainda muito ligado ao universo dos media e do jornalismo, o crítico televisivo garante manter o mesmo lema: “Escrevo todos os meus artigos como se fossem escritos na pedra. Sei que eles vão para o lixo, porque não há nada mais velho do que um jornal ao final do dia, mas empenho-me muito em qualquer texto que escreva. Escrevo textos de três linhas e empenho-me como se fosse para escrever um livro”.

Eclético e curioso por excelência, Eduardo Cintra Torres que, no jornalismo, começou como um autodidata conta-nos que depressa sentiu a necessidade de investir em formação na área da comunicação. Licenciado em História, mas com prática jornalística desde muito cedo, o atual docente da Universidade Católica Portuguesa, sentiu que “precisava de ter essa formação para não ficar numa posição intelectualmente omissa em determinados domínios”. Depois de quatro anos a escrever intensamente crítica no jornal Público, Eduardo Cintra Torres decide fazer o Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, no ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa), e é nesse momento que começa a desenhar os contornos do triângulo amoroso entre História, Comunicação e Sociologia, que viria a ser pedra basilar de todo o seu trabalho de investigação.

Como nos explica “estudar o jornalismo apenas pela perspetiva da comunicação é um trabalho incompleto. A perspetiva da sociologia, da inserção dos media enquanto sociedade é fundamental. Não conseguimos desligar da sociedade. Desligar da sociedade quando se estuda jornalismo e comunicação é uma castração”. Partindo do princípio de que media e sociedade são indissociáveis e vivem em simbiose, o crítico considera que as duas entidades funcionam como espelho uma da outra:

É importante compreender o que é que os media nos dizem sobre a sociedade e o que é que a sociedade disse a estes conteúdos mediáticos”.

Avesso à ideia de considerar os espectadores como indivíduos estúpidos e ignorantes – “uma carneirada”, como destaca o crítico português, toda a sua investigação tem vindo a provar precisamente o contrário – ou seja, que os públicos pensam. Focando-se no conceito de multidão, e analisando a presença desta no próprio ecrã televisivo, Eduardo Cintra Torres vem mostrar que:

Pode haver 1 milhão de pessoas a pensar a mesma coisa, mas isso não significa que sejam carneiros. Significa que são 1 milhão de pessoas a pensar a mesma coisa.”

Diante da necessidade de compreender estes fenómenos e porque, como nos avança, não havia, em Portugal, até à data de início dos seus trabalhos, nenhum estudo sobre a multidão enquanto Instituição, enquanto entidade, por mais efémera que seja, o investigador estreou uma nova rota de investigação que tem precisamente como ponto de análise “a multidão reunida com um objetivo”.

Essa multidão, como nos explica, são também os recetores de rádio e televisão que estão para além dos dispositivos e que, de acordo com o teórico, merecem ser entendidos como um fenómeno complexo.  “As massas existem e são um enigma antropológico, nunca se sabe o que as massas pensam nem o que vão fazer. Hoje em dia, apesar das ferramentas incríveis que há para conhecer a opinião dos coletivos, o enigma persiste. É um tema que nunca terminará”.

Na sua tese de doutoramento, em 2010, Eduardo Cintra Torres fez um levantamento exaustivo sobre a teoria da multidão, desde a Grécia Antiga até ao princípio do século XXI, e focou-se sobre as representações desta manifestação no ecrã televisivo.

Como nos explica, a História oferece uma preciosa ajuda no momento de compreender estes fenómenos: “A História permite compreender melhor fenómenos presentes e ver continuidades quando, normalmente, muitos investigadores o que fazem é precisamente salientar as inovações. Sinto que, por vezes, lhes falta um pouco de conhecimento histórico para compreender que embora estejamos diante de uma novidade, trata-se de algo que, provavelmente, já se fez assim há 150 anos, com a tecnologia e com a sociedade daquele tempo.” Para o crítico é preciso não perder de vista a ideia de que:

O Ser Humano é o mesmo, evoluímos, claro, mas há continuidade e isso não pode ser esquecido”.

Para nos provar isso mesmo, Eduardo Cintra Torres, que tem em mãos uma investigação que passa pelos jornais da primeira metade do século XIX, confessa-nos que há dias escreveu à margem de um dos seus livros a seguinte nota – ‘isto são blogues’ – em alusão a uma série de jornais políticos, pós-censura, que eram escritos por um único indivíduo. “Aquilo assemelha-se imenso aos blogues. As queixas, a perceção de que ‘o jornal do lado’ disse algo sobre mim…”.

A História repete-se e a sociedade acompanha, ciclicamente, o seu ritmo. Eduardo Cintra Torres acredita que esta ideia pode ajudar a explicar o próprio fenómeno das fake news. De acordo com o investigador, que confessa não ser um pessimista em relação ao futuro do jornalismo, a própria sociedade funciona como uma entidade reguladora.

Em geral os cidadãos caem nas fake news como quem é apanhado num assalto na rua. Mas, da mesma maneira que a sociedade não quer que haja crimes, nem assaltos, nem assassínios, também não quer que existam fake news”.

Assumindo que as novas plataformas e a internet permitiram uma explosão mediática e uma explosão da desinformação, Eduardo Cintra Torres defende que, no geral, a sociedade está a passar por um processo de ajuste e que, com a sua capacidade de regulação, “vai entender e incorporar, no futuro, que aquilo que está na internet pode ou não ser verdade.”

O comportamento, mais uma vez, replica, para Eduardo Cintra Torres, um eco deixado pela História: “Acredito que haverá esse processo de ajustamento da mesma maneira que há em relação aos rumores, a coisa mais antiga que existe na sociedade humana. No século XIX os jornais publicavam rumores e isso ‘curou-se’. Quem sabe se não acontecerá o mesmo com a internet? Não adivinho o futuro, mas acredito que há esses processos de ajustamento das sociedades”.

Apontando a eleição de Donald Trump, em 2016, como um dos momentos em que a desinformação vingou e teve sucesso, o investigador fala de um processo evolutivo e garante que “as pessoas têm a sua própria auto-literacia. As pessoas aprendem a aprender”.  

Confessa-nos que, pese embora a sua vasta experiência no mundo da comunicação, também caiu duas ou três vezes em desinformação quando entrou nas redes sociais. Partilhar notícias verdadeiras, mas desatualizadas ou retiradas do contexto é, como avança, “a armadilha mais simples do mundo”.

Eduardo Cintra Torres trabalha, da perspetiva da comunicação e, especificamente, dos estudos de televisão, no sentido de ‘desmontar minas’, acrescentar conhecimento e “destruir um pouco o planeta negro da ignorância que temos sobre os fenómenos”.

Desmistificar ideias erradas, repetidas há anos, é outro dos grandes objetivos assumidos pelo investigador. “A multidão enquanto fenómeno social não é bem entendida. A multidão não é violenta. Há mais violência na sociedade quotidiana do que há, quantitativamente, nas multidões. Por dia existem em Portugal cerca de umas mil multidões por mês: o futebol, as multidões políticas, as multidões religiosas… em quantas há violência? Zero, ou uma, por hipótese. E depois vemos que há crimes na rua todos os dias. Há muito mais violência na sociedade sem ser em fenómenos de multidão do que em fenómenos de multidão

A ideia de que a multidão é perigosa, que é uma coisa que vem do século XIX, é uma ideia que se mantém e que está errada”.

Nascido em Lisboa e criado em Paço de Arcos, Eduardo Cintra Torres, confessa que, para si, “é aprender até morrer, sempre com humildade”. A mesma que manteve em cada um dos capítulos da sua já longa carreira.

O mais negro, porém, começou a escrever-se em 2005, com a chegada do governo de José Sócrates, altura em que Eduardo Cintra Torres começa a escrever, numa coluna de opinião, comentários sobre a prática de comunicação do Governo e do primeiro-ministro de então. “Escrevi um artigo sobre os incêndios que motivou o primeiro grande processo instaurado pela ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Tive três queixas-crime contra mim por parte da administração e da Direção de Informação da RTP e ainda tive uma análise, uma espécie de processo, no Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas”.

No artigo, intitulado “Como se faz censura em Portugal”, publicado a 20 de agosto de 2006, Eduardo Cintra Torres acusava a RTP de ter cedido a pressões governamentais no tratamento dado às notícias sobre os incêndios no Telejornal.

No texto, o crítico português analisava a cobertura dos incêndios florestais nos principais canais generalistas, “estabelecendo a diferença com a da RTP, verificando que estes nem sequer cumpriam as regras que a própria estação tinha estabelecido para aquela cobertura”, relembra Eduardo Cintra Torres. Daquele que considera ter sido um período muito difícil, o crítico português recorda, amargamente, algumas memórias: “Estive um ano em tribunal a prestar declarações, a ser pressionado pelos membros da Direção de Informação da RTP. Foi um momento muito complicado.” E se, em 2018, viria a escrever um livro sobre a força do povo e a coragem da massa operária na Greve Geral de 1903 no Porto – Um estudo de história, comunicação e sociologia, 11 anos antes Eduardo Cintra Torres confessa que duvidou do papel da sociedade enquanto guardiã da liberdade de expressão: “Esse episódio marcou-me muito porque foi um ataque poderosíssimo do poder político e dos seus representantes contra mim. Chocou-me o silêncio que a sociedade manifestou em relação ao assunto.

A sociedade em Portugal não se preocupa muito com a liberdade de expressão. É algo muito triste, mas que é um facto constitutivo – não haver essa consciência generalizada de que é preciso reagir quando há ataques à liberdade de expressão ou quando o poder político intervém nos media à margem da lei e do que é eticamente aceitável”.

O tribunal deliberou que foi precisamente o que aconteceu com o crítico português. Como nos conta, “foi a vingança da história. Fui absolvido em tribunal, a RTP recebeu a deliberação a meu favor por parte do juiz, apresentou recurso, e recebeu uma recriminação ainda maior por parte do Tribunal da Relação. O Tribunal Administrativo anulou a documento da ERC e a sua decisão”. Do tribunal Eduardo Cintra Torres saiu vitorioso, mas, o primeiro lugar do pódio foi ocupado pela liberdade de expressão. A mesma pela qual se tem debatido, um pouco por todas as esferas por onde passou, ao longo da sua vida.

Quando o questiono sobre a sua maior conquista, Eduardo Cintra Torres hesita. Foram, afinal, tantos os universos pelos quais passou – do ensino, aos media, passando pela televisão e pela investigação – o crítico português não consegue selecionar apenas um momento. “Ao longo da vida fui sendo capaz de fazer várias coisas diferentes ao mesmo tempo. E todas elas me deram muito conhecimento e satisfação”.

Hoje, acredita ter dado o seu contributo para os estudos de televisão. Enquanto investigador ajuda, diariamente, a compreender que existe mais para além da ‘caixinha mágica’ que mudou o mundo. Uma multidão sentada diante do ecrã. Uma multidão transposta para o ecrã. Uma multidão que demanda ser compreendida e vista como um todo – produto e processo de uma História inacabada, de uma sociedade que continua a escrever-se, diariamente, a cada novo conteúdo, sob os holofotes do sistema mediático.

Eduardo Cintra Torres está na régie. Analisa cada movimento, dá sentido a cada prática de comunicação. No ‘fora de campo’, mete a sociedade em jogo.

Acredita que História, Comunicação e Sociologia não podem ser vistas senão como um todo, parte de um puzzle em constante construção. O crítico português ordena as peças baralhadas, confere sentido ao mundo através da televisão.  

1. Uma das primeiras críticas televisivas escritas por Eduardo Cintra Torres

 

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