Conheça a história do menino que aos sete anos engraxava sapatos na recepção do Hotel Oporto, aos 19 dava aulas na primária e agarrava com ambição, na Colômbia pós-Escobar, o maior desafio da sua vida: formar homens e mulheres capazes de pensar, de se libertar, de construir e de sonhar. Eis Armando dos Santos Diaz, o diretor de formação que pôs Portugal a pensar.

1971, Maracaíbo. Nos longos corredores do Hotel Oporto corre um menino. Voluntarioso e perspicaz acorre a todas as solicitações. Com ar juvenil e um sorriso estampado no rosto, empilha uma caixa atrás de outra para conseguir, finalmente, chegar aos pés dos hóspedes, oferecendo ao seu calçado o melhor brilho possível. Este é Armando dos Santos Díaz, hoje um dos principais especialistas em formação hoteleira a trabalhar em Portugal.

Desde que se conhece que não se imagina noutro ambiente. Filho de uma família de emigrantes que, nos anos 50, ruma à Venezuela, desde cedo decidiu que o seu futuro passaria por ali.

Estuda de dia para, ao final da tarde, repor bebidas nas arcas frigoríficas, ajudar a fazer camas, algumas limpezas, e, assim contribuir para as tarefas da família. O peso da responsabilidade não o assusta. Com o estatuto de ‘menino querido’ dos hóspedes do hotel, Armando, que confessa ter sido sempre muito independente, faz-se à vida e aos sete anos, já aspira a grandes voos.

«Adorava estudar. Apesar de ter sido sempre bom aluno, exigia mais. Pedia à minha mãe que me pusesse numas escolinhas para poder aprender para além dos horários da escola. A minha mãe achava que eu não tinha necessidade nenhuma disso, mas eu era assim, um miúdo ansioso. Queria muito aprender.»

O desejo acabou por estender-se ainda mais além. Da avidez pelo conhecimento à necessidade de o passar aos outros parecem ter sido apenas alguns centímetros. Centímetros, esses, que Armando dos Santos Diaz confessa terem sido ganhos à força, à custa de muitas fraldas mudadas aos irmãos mais novos.

Armando cresceu a ver crescer. Aos 19 anos já ia dar aulas às crianças da primária, numa escola perto de casa: «Quando estava de férias e algum professor ia de baixa, era eu que dava as aulas. É uma vocação que cultivo desde muito pequeno, a de ensinar. Está-me no ADN.

Acredito que a formação é a batalha para tudo isto e para tantas outras coisas. Como pode progredir e contribuir um indivíduo que não tenha saber?

Depois de passar por países como o Bahrein, a Turquia e Trindade e Tobago, Armando ainda não encontra a resposta. Certezas tem apenas uma: «Com tantas culturas e tantas nacionalidades é curioso observar que quando estamos juntos numa sala de formação somos todos iguais. Não há diferença».

A vida ensinou-lhe a lidar com a diversidade e hoje, garante, esse é um dos seus maiores trunfos. «Sempre convivi com pessoas de baixo poder económico, esses sempre foram os meus amigos, sempre. Lidava com pessoas muito humildes, vias as condições em que elas viviam, e isso deu-me princípios muito importantes para enfrentar um mundo que, infelizmente, ainda é muito diferenciado em termos sociais».

Na hotelaria, Armando dos Santos Diaz tem convivido de perto com esta realidade. Enquanto diretor de formação de diversos hotéis da cadeia internacional Intercontinental conjugar a vida pessoal de cada trabalhador com a sua formação a nível profissional pode revelar-se, como nos conta, um verdadeiro desafio.

Como é que eu podia falar a uma empregada sobre limpeza se a casa dela era num bairro de lata e o chão era terra amarela? É complicado. Como é que eu podia falar de limpeza a alguém que nem sequer tinha condições de higiene em sua casa?

Os desafios acumulam-se, mas Armando dos Santos Diaz, que garante que «formar é transmitir confiança às pessoas» nunca deixa de acreditar. «Tento perceber tudo o que há de bom nelas e despertar-lhes essa ‘chama’ para que consigam libertar-se, para que consigam construir o seu futuro e, mesmo que com muita dificuldade, saibam que ainda há algo pela frente que podemos construir».

Foi esse o lema que adotou para a sua vida. Quando aos 20 anos vai para a Universidade de Oriente, na ilha venezuelana de Margarita, para estudar Turismo e Gestão de Empresas, Armando Díaz só tem um objetivo em mente: oferecer conhecimento que possa ser valioso para as pessoas.  «Não aceitaria nunca nenhum desafio em que tivesse de transmitir alguma coisa que não fosse boa para os trabalhadores. Nem pensar. Só transmito aquilo que sei que é gratificante e bom».

 

Na já longa carreira de Armando Díaz, muitas foram as adversidades. Lembra-se que quando veio para Portugal e começou a dar formação sobre sorrir, sobre cumprimentar, as pessoas achavam que não tinham nada para aprender.

«Armando, somos da terra do fado», diziam-lhe. «Continuavam muito ligadas à tristeza, à saudade». Não entendiam o porquê de estar a aprender aquelas coisas. «As pessoas pensavam ‘estou a fazer isto para quê, se depois nada tem valor…’».

Armando provou-lhes precisamente o contrário. Ao trabalhar na criação e na implementação do Progress, um programa de qualidade para a hotelaria, o formador mostrou que os colaboradores tinham uma palavra a dizer, nomeadamente na resolução dos problemas da própria empresa. «Era um programa que ensinava às pessoas uma certa metodologia para tomar decisões. Ali as decisões não eram tomadas exclusivamente pela direção, passava por dar oportunidade aos funcionários, que estão diariamente em contacto com as dificuldades, para eles próprios encontrarem soluções para os problemas».

Perspicaz e batalhador, o atual diretor de formação do Crowne Plaza Vilamoura confessa que quando lhe deram a oportunidade de oferecer aos funcionários o poder de tomar decisões, não hesitou. Recorda que as pessoas «tinham muito medo. Achavam que nunca ninguém lhes tinha perguntado o que podiam fazer pelo seu trabalho e que as suas opiniões não eram importantes. Sempre tentei mostrar-lhes que aquela era a oportunidade deles, que podiam fazer algo porque a decisão estava neles.»

Assim criaram grupos de melhoria. Como nos conta, eram o cozinheiro, o copeiro, a senhora das limpezas que propunham soluções para problemas que, posteriormente, eram apresentadas à direção, avaliadas e postas em prática.

O impacto na Europa, lembra, foi muito grande. Armando Díaz foi considerado o ‘Master Change Agent’ e era dele a responsabilidade de implementação da metodologia por todo o território europeu.

O mais gratificante era ver que quando entravas no hotel as pessoas se transformavam quando vestiam a farda. E ver o orgulho e o brio destas pessoas, a sua transformação, era algo brutal.

Não menos fascinante é a história deste venezuelano que, após um estágio no Intercontinental de Guayana, em 1987 e com apenas com 23 anos, ascende a um cargo pouco comum para novatos.

«Lembro-me que era um miúdo muito novo. Terminei o meu estágio e comecei a dar aulas num Instituto … Tinha muita vocação para ensinar. Até que um dia recebo uma chamada do Hotel, depois de ter terminado o estágio, e pensei imediatamente que me iam chamar para trabalhar como copeiro ou rececionista, que seria o expectável naquela altura… mas, contra todas as expectativas, ao telefone estavam a diretora de pessoal, o diretor geral e a diretora de formação, para convidar-me para ser o próximo diretor de formação do hotel. Fiquei com taquicardia, tive de ir ao médico porque nem conseguia dormir».

Seguiram-se três anos de experiência na Venezuela e, mediante um futuro incerto, recebe a visita de uma tia que o desafia a ir para a Europa, um destino à sua medida.

«Nesse momento decidi largar todo aquele mundo e vir-me embora para Portugal, em 1990. Eu vinha com uma experiência enorme na área da formação e cheguei aqui e fiquei parado no tempo. Ia a vários hotéis que mal sabiam o que era isso da formação, da qualidade». Meses depois um anúncio no jornal Expresso, muda tudo. «Pediam um diretor de formação para uma propriedade de luxo no Algarve. Quando vi os requisitos pensei que aquilo só podia ser para mim».

Candidatou-se e assim veio a tornar-se no primeiro diretor de formação do Sheraton Algarve, atual Pine Cliffs, um grande resort a nível europeu.

«Comecei a trabalhar em 1992 e no ano anterior preparei um plano de formação de 450 horas para todos os funcionários. Estamos a falar de há vinte e tal anos atrás…E estamos a falar de dar formação a empregadas de limpeza e de cozinha que, já naquela altura, tinham aulas de informática. Naquela altura as pessoas perguntavam-se o que é que tinham a ver com aquilo. Eu próprio, às vezes, também não percebia muito bem, mas tinha de ser (diz, entre risos). Hoje em dia é uma habilidade essencial».

Licenciado em Gestão de Empresas Turísticas e Hoteleiras, pós-graduado em Gestão de Recursos Humanos e Doutorando em Novos Recursos e Sustentabilidade em Turismo, Armando Díaz encontra hoje nas experiências vividas a certeza de que, «com tantas opções na vida, esta foi e é a mais gratificante. A minha vocação é esta, transmitir saber, festejar a liberdade de comunicação que até há bem pouco tempo era tão limitada».

Na Colômbia, onde passou um ano como Diretor de Formação do Intercontinental de Medellín, Armando dos Santos Diaz confessa ter vivido uma experiência ímpar. «Aquilo era uma loucura, algo fantástico. Ser Diretor de Formação do Intercontinental de Medellín tinha uma grande conotação. Porque normalmente o hotel de Medellín era o hotel academia de todos os diretores. Todos os futuros profissionais tinham de passar por Medellín para depois ocupar outras funções na América Latina. Era uma responsabilidade muito grande. Eu aceitei o desafio, deixei o Algarve e arranquei para a Colômbia dois meses depois de terem morto o Pablo Escobar. Cheguei naquele clima intenso, a uma cidade que tinha vivido momentos terríveis de incerteza…»

As pessoas saíam para trabalhar, mas não sabiam se voltavam. A porta de serviço de entrada do pessoal tinha a imagem de uma santa e as pessoas quando entravam rezavam para agradecer a Deus por estarem vivas. Havia muitos ataques bombistas todos os dias.

Pese embora as circunstâncias, Armando tem da Colômbia a imagem de «um país maravilhoso, de um povo de uma hospitalidade fantástica, de uma gratidão imensa, no meio daquela confusão toda».

Recorda que, se em Portugal tinha de incentivar as pessoas a sorrir e a cumprimentar, na Colômbia acontecia precisamente o contrário: «lá tinha de dar formação às pessoas para limitar o sorriso e o cumprimento».

Confessa ter aprendido a melhor das lições: a da gratidão à vida. «Vivíamos permanentemente naquela situação em que saíamos e de repente explodia uma bomba, não sabíamos quantos ficavam vivos, quantos ficavam mortos….»

Lembra-se, inclusivamente, que à meia-noite, quando ia no autocarro do hotel transportar os funcionários, guiado por motoristas, que eram, normalmente, militares disfarçados de civis, era impressionante ver as milícias nos bairros e nas favelas. «Estavam mais armados que as Forças Armadas da Colômbia.

Quando íamos no autocarro a sensação que nos dava era de que não podíamos mexer a pupila do olho porque a qualquer momento eles podiam disparar.

Era algo muito sério. E essa era a nossa gente, a gente que no dia seguinte vestia a farda de empregada de quarto, de restaurante, de rececionista… todos profissionais, mas que viviam em situações que não eram fáceis».

Hoje, quando se fala em segurança, Armando Díaz suspira: «Eu vivi muita coisa…». Usa a experiência para ajudar a crescer os profissionais com quem se cruza diariamente. Apaixonado por teatro, o diretor de formação não consegue deixar de estabelecer uma analogia:

«Quando faço o acolhimento, no primeiro dia, digo aos trabalhadores: ‘isto aqui é como um teatro. Vocês são estrelas, vocês são atores, senhores. Vocês vão aqui personificar um papel. O seu papel, senhora Joaquina, o seu papel nesta obra será o de uma empregada de quartos. E a senhora vai entrar em cena neste momento.’ E dou-lhe o guião, que são as suas tarefas, aquilo que terá de fazer. Quando estamos nos bastidores eu digo-lhe ‘vá, agora vamos entrar no palco’ e vocês vão ver como tudo isto funciona’. Num hotel todos somos atores e atrizes. E o mesmo acontece no teatro, onde todos têm também as suas dificuldades, mas têm de as enfrentar. Quando estão no palco têm de assumir um papel e não podem demonstrar que estão a sofrer. Porque o nosso cliente, o nosso público, está à espera de algo muito bom de nós. Isto é terrivelmente difícil, mas é muito gratificante e é isto que me dá muito gozo. Não me imagino a fazer uma coisa diferente.»

Atualmente a liderar a formação do Hotel Crowne Plaza, em Vilamoura, Armando Díaz já não é o menino de sete anos que deambulava pelos corredores do Hotel Oporto. «Não quero ficar com o saber, quero passá-lo a toda a gente». Hoje não repõe bebidas, mas é cocktail de força, motivação e energia para muitos dos profissionais que lhe passam pelas mãos.

Da vida guarda dois grandes lemas: Dar e conviver. É com essas mesmas armas que continua a fazer frente ao mundo. No quadro branco acumulam-se conteúdos para lecionar. Hoje não tem, como em tempos, um diretor de Recursos Humanos, que, como nos conta, era pior que a PIDE: «Censurava tudo o que eu tinha para ensinar».

O poder do saber é terrível para uma ditadura. Saber é dar oportunidade para que as pessoas pensem, para que se possam libertar e decidam que aquela não é a vida que querem.

Armando dos Santos Diaz já não engraxa sapatos, hoje, está lá para ensinar, para formar homens e mulheres capazes de sorrir, de pensar, de construir e de sonhar. Às vezes tem a sensação de ainda ter de subir, a esforço, uma caixa atrás de outra para lá chegar. Mas, com 33 anos de experiência, Armando Díaz sabe que o poder está em acreditar.  

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